Legal, mas imoral – um clube não pode abandonar a sua cidade
Se leis e regras foram criadas como códigos para apontar o justo, a relação entre clubes e cidades ainda não foi compreendida.
Imagine que a pequena cidade em que você mora tinha um clube de futebol desde 1921. Durante quase 60 anos, ele arriscou algumas participações na última divisão do campeonato profissional do estado, mas não obteve êxito. Enquanto isso, clubes de cidades próximas, maiores e mais desenvolvidas, tiveram a honra de disputar a divisão de elite, receberam grandes clubes e craques em seus municípios. Para presenciar um evento desta envergadura, a única opção era ir até São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Araraquara, Bauru, Marília.
No final da década de 70, o time da cidade, então com 26 mil habitantes, entrou em uma nova fase. Passou a disputar o Campeonato Paulista de forma sequencial, condição imprescindível para aspirar acessos. No entanto, entrava e saia ano e nada da agremiação fundada por dois cariocas (um rubro-negro e outro tricolor) subir de divisão. Talvez, o forte da cidade pudesse ser mesmo a laranja.
Em 1988, a persistência surtiu efeito e o clube conquistou o seu primeiro acesso, para o 3º nível do futebol paulista. Na quarta tentativa de subir mais um degrau, em 1992, era chegada a hora de gritar “é campeão” pela primeira vez na história. O estádio Picardão receberia, a partir do ano seguinte, os jogos da famosa “Intermediária”, o último degrau antes da 1ª divisão.
A Federação Paulista de Futebol bateu firme na exigência de estádios com capacidade mínima de 10 mil lugares e o sonho teve de ser abortado. Restava o caminho da resignação de disputar novamente a 3ª divisão. Mas em crise existencial e política, o clube rubro-negro jogou a toalha e desistiu de disputar competições oficiais. Licenciou-se da FPF mesmo sabendo que, quando voltasse, teria de recomeçar da última divisão.
Após dois anos de inatividade, em 1995, a agremiação, que tem uma onça como mascote, retornou para disputar a humilhante 5ª divisão. Como desgraça pouca é bobagem, no ano anterior, a FPF reestruturou as suas divisões, criando as famigeradas séries A1, A2, A3, B1A/B1B e B2A/B2B. A campanha foi fraca e, em seguida, uma nova licença foi solicitada. A perspectiva era negra, dezenas de clubes nesta situação nunca mais voltam ao futebol profissional.
Em 1997, um investidor resolveu abraçar o clube. Formou uma espécie de trinca ao lado de um novo presidente e de um diretor de futebol. O resultado foi surpreendente. Em três anos, três acessos e nova chance de disputar a 2ª divisão. A população local, àquela altura de 38 mil habitantes, mal podia acreditar. Destarte, a situação do estádio foi contornada e o clube, “ressurgido das cinzas”, partiu com tudo em busca da 1ª divisão.
Mais uma vez, a realidade mostrou-se dura. O nível da 2ª divisão era mais puxado do que o da 3ª e um novo rebaixamento não pôde ser evitado. Nova derrocada? Não. Em 2002, outro acesso para a 2ª e, no ano seguinte, o sonho de chegar à 1ª divisão tornou-se realidade. O OFC havia chegado à elite paulista, de onde saiu mais algumas vezes, mas retornou em 2019 e está firme para 2020.
Parecia o céu, mas o clube dirigido com mão de ferro pela trinca presidente/investidor/diretor de futebol – na prática, era o investidor quem dava as cartas – foi mais longe. Boas campanhas no Paulista proporcionaram chances na Série D, a 4ª divisão do Campeonato Brasileiro. Com invejável atrevimento, em 2011 subiu em para a Série C e, como campeão da 3ª em 2012, cavou seu espaço na cobiçadíssima Série B, de onde não saiu mais. Quase subiu para a Série A em 2017.
A história do clube da sua cidade seria linda, não fosse um incômodo detalhe. O mesmo estádio que impediu que o clube disputasse a 2ª divisão do Campeonato Paulista, em 1993, tornou-se o pivô de uma enorme encrenca entre a direção do clube e a prefeitura itapolitana, que começou a esquentar em 2011, mas eclodiu em 2015. À medida que o clube foi obtendo resultados, as exigências de adequação do estádio foram aumentando. Curiosamente, o Estádio dos Amaros, que entre 1989 e 2010 chamou-se Ideonor Picardi Semeghini, já havia sido de propriedade do clube, que o doou ao município na década de 70.
Cravado no meio de casinhas típicas do interior, aquele que chegou a ser chamado de “A Bombonera do Interior” passou por uma boa reforma de R$ 1,2 milhão em 2015, quando o clube mandou os seus jogos da Série B do Brasileiro na cidade de Osasco, um município da Grande SP, a 360 km da sua cidade. Parecia que a divergência estava resolvida, mas o propalado “Padrão FIFA” para os estádios, exigido pela Federação Paulista de Futebol, fez com o que o Corpo de Bombeiros vetasse o ‘AVCB’, o Auto de Vistoria que libera o equipamento para uso público. O motivo: as cadeiras das arquibancadas que precisariam ter 85 cm de largura tinham 55 cm. Clube e prefeitura racharam de vez e a ameaça de mudar de cidade (sim, mudar de cidade!) da trinca que comanda o clube ganhou força.
Em 2011, a CBF divulgou uma resolução do então presidente Ricardo Teixeira – que foi banido do futebol nesta semana – regularizando as mudanças de sede e nome dos clubes. A entidade avisou que “só aprovaria transferências se houvesse justificativas sólidas de benefícios aos times”. Àquela altura, a prática estava na moda. O Grêmio Barueri havia ido e voltado de Presidente Prudente, o Guaratinguetá tinha partido para Americana e o mineiro Ituiutaba para Varginha. Sabe qual destas experiências deu certo? Nenhuma.
Pois agora imagine que simplesmente levaram o clube da sua cidade embora. Para Barueri, outra cidade da Grande SP, vizinha a Osasco. Mediante o pagamento de R$ 800 mil para a Federação Paulista, efetuado pelo Seu Mário [Teixeira], dono do Audax (?!?), o time rubro-negro foi transferido de sede como se chupa um picolé – sua cidade deixou de ser a maior produtora de laranja do país, mas se tornou a capital nacional do sorvete.
Vamos combinar: o maravilhoso trabalho de ascensão do Oeste conduzido por Ernesto Francisco Garcia (presidente), Mauro Guerra (diretor de futebol) e principalmente Aparecido Roberto de Freitas, o Cidão (investidor que também é diretor), foi algo notável, digno de uma página dourada na história do futebol paulista e brasileiro. Mas a efeméride não dá o direito de o clube jogar nas costas da prefeitura da cidade a obrigação de oferecer um estádio “Padrão FIFA”. Para todos os efeitos, um clube deve se manter por conta própria.
Agora, a situação é esta. Desde 2017, o Oeste Futebol Clube de Itápolis está em Barueri por uma “oportunidade de negócio”. Seu antigo torcedor está alijado de ver o clube atuar na 1ª divisão do Campeonato Paulista e na 2ª divisão do Campeonato Brasileiro, condição que os aficionados de América de Rio Preto, Comercial de Ribeirão Preto, Ferroviária de Araraquara, Noroeste de Bauru e Marília adorariam desfrutar. A opinião de Pedro Curti, torcedor e cidadão itapolitano, resume o sentimento da população local, que se diz traída pelo presidente do clube. “Tenho certeza que a maioria dos oestinos prefere que o clube jogue a 5ª divisão do Campeonato Paulista, que nunca mais jogue o Campeonato Brasileiro, mas que continue jogando aqui na cidade. O Oeste tem que ser pra sempre de Itápolis.” A população atual do município é de 43 mil habitantes.
Por fim, a média de público do Oeste na Arena Barueri na edição da Série B do Campeonato Brasileiro que se finda neste sábado (30) é inferior a mil pagantes, a pior de todos os 20 clubes. Dos nove piores públicos da competição, oito foram em Barueri, que mal sabe que “Rubrão” é o apelido do clube.
Quanto às entidades que regem o esporte no Brasil e no mundo e a própria Justiça, quase sempre o conjunto de situações reais aponta para a correção ou não de uma regra ou lei. Até nas franquias das quatro principais ligas esportivas dos Estados Unidos, os casos de mudança de cidade dos times provocaram em seus torcedores originais uma dor difícil de expressar, um sentimento de amor roubado que não combina com o esporte. O Foz do Iguaçu está especulando mudar-se para Medianeira, no Paraná. O mineiro Poços de Caldas também flerta com a possibilidade. É preciso cuidado. No futebol brasileiro, oportunidades de negócios, sem respeito ao torcedor, parecem condenadas ao fracasso.